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terça-feira, 20 de abril de 2021

 

nunca me saiu da cabeça o causo que a professora de história de nem sei que série contou. Era uma aula específica sobre castigos ou torturas. Ou castigos e torturas. Medievais, em presos de guerra ou ditadura.

Pessoas amarradas, depois de terem seus corpos rasgados por chicotes com navalhas amarradas nas pontas, recebiam em suas feridas expostas, longas mechas de cabelo em movimentos de ir e vir. Incansáveis movimentos de ir e vir por entre a pele dilacerada até que algum objetivo entre matar este ou aquele fossem alcançado.

Cabelos. Longos, lisos, macios. Feridas. Profundas, vermelhas, talhadas na carne humana.

Como a carne, forte perante um fio, um mísero fio de cabelo, se via tão vulnerável? E me passava a cena repetidas vezes. E me perguntava repetidas vezes: como?

Quando estamos abertos. Quando deixamos qualquer brecha que leve a próxima camada do ser, é sempre e exatamente por onde passam as mãos que seguram suas espadas de fios de cabelos longos, lisos e macios, amolando na alma, em leves e sentenciáveis movimentos de ir e vir, a bainha da dor.

 

um corpo solto

solto. todo corpo é um. todo um é solto.  um corpo solto é liberdade, sem amarras, livre de prisões. livre no cerne, livre na carne. um corpo solto à vontade. sua própria vontade. desafogado, descomprimido, desoprimido, descompresso. o corpo fora da caixa, fora do padrão. apenas o corpo pelo corpo. o corpo apenas solto.

 Há em mim uma coisa maior, algo que diz

- não a deixe!

E existe outra coisa, talvez muito maior que a anterior, que sobrepõe o dito aos gritos

- ela fica melhor sem você.

 Cinco dias da nova rotina.

Dormi muito tarde, vivendo a vida dos filmes a fim de esquecer a minha. Acordar mais tarde ainda, evitando o sol e o que mais ele banha. Evitando tudo o que não posso escolher. Vivendo apenas o que alcança meu controle.

 

e se me pensam o contrário

sem me vêem como mar raso

quando sobre muitos me fiz profundo

ah, meu Pai, se me vissem como talvez me veja e me quisem como Tu me queiras

eu que fui maleável, que me dispus a ser o mais íntegro e limpo - tal qual tecido branco depois de muito se alvejar

meu amor, se me ajoelhei fronte ao teu altar e te prometi a vida por amor, se me fiz vida, amor e vida por ti, como agora ages assim

e me perco ente tempestades, paisagens turvas, distorcidas. é o meu amor, seu amor, é tudo que pulsa e reluz, todas as coisas que guardo, acanhado, nos bolsos

 há todo um caos espalhado por aqui. hoje mais cedo achei que conseguiria, não antes do café, mas depois, mais esperto e verdadeiramente acordado, eu conseguiria. mas há muito caos espalhado por aqui. e está impossível andar sem tropeçar ou ter que desviar de um ou dois cacos pelo chão. ainda restava alguma coisa inexplicável, um fino fio prateado, sei lá se podia dizer, chamar de esperança. estava alí. eu via. e eu achei que conseguiria, que ao longo do dia, o calor, os afazeres, os telefonemas, os emails, isso tudo se encarregaria do caos. mas ainda há muito por aqui. um caos aos prantos que talvez amanhã eu consiga lidar.

 deito-me inquieto como um jogador de futebol a correr todo o campo atrás da bola e a cama de solteiro se torna gigantesca noite após noite. sento-me aflito como o salva-vidas olhando fixamente a vítima do acidente após usar o desfibrilador e a cadeira não se sustenta movimento após movimento. os dias e as noites dentro dos dias após dias rasgando calendários mês a mês.

 para que me servirão as dunas

para que me servirão as roseiras

para que me servirão as tardes ensolaradas e as manhãs de chuva

para que me servirão as músicas, os filmes, as danças

para que me servirão

de que me servirão

a quem direi o que ainda sei falar

a quem darei o que ainda sei fazer de melhor

ao que se destinará esses restos

mortais gestos

imortais restos

para que servirá ainda o viver